3 de fevereiro de 2010
o meu frigorífico.
o meu frigorífico está cansado de estar vazio. está cansado de ser roubado diariamente. está ainda mais cansado dos abusos constantes por parte de estranhos. estranhos que lhe tocam a qualquer hora, em qualquer parte do corpo, e sem pedir autorização. mas o que o magoa mesmo é ser mal tratado por aqueles a quem ele dedica a sua existência. é isso que o faz gritar em silêncio. que o faz contorcer-se para não explodir. é isso que o viola. é isso que o atenta. que o choca. quando tudo não passa de momentos vãos. quando nem chegam a dizer o nome. quando abusam da sua receptividade. quando nem obrigado dizem ao sair. e ele é um bom frigorífico. nem reclama daqueles que estão há demasiado tempo, os que já passaram da validade. trata-os bem. ele sabe que eles estão seguros lá dentro. e que quando saírem de lá morrerão. ele trata deles como se fossem os seus amigos com sida. sabendo que, a qualquer momento, alguém abrirá a porta e... penso que o que ele faz é defender-se de uma ausência futura. uma ausência anunciada. mas que não o faz sofrer menos. o meu frigorífico não gosta de falar. isso cansa-o. mas há dias em que ele só queria não ser um frigorífico. que seria bem mais feliz se fosse uma máquina de lavar roupa ou um microondas. e não é que o meu frigorífico queira ser especial. não quer. ele só vive com medo de ficar igual a todos os outros. de ser mais um. (pausa) eu percebo-o.
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