3 de outubro de 2009

l'épine dans le coeur.

(...) a banda sonora do jantar foi o som do lento arrastar dos talheres no prato e da viagem do vinho do copo até ao estômago. ao dobrar o guardanapo ewan repara numa nódoa. em 20 anos nunca ninguém colocara uma nódoa no guardanapo. o que tinha aquele dia de tão diferente? não era o momento para essa pergunta. ewan sabia que essa acabaria por levantar tantas outras, aquelas que tinha guardado há 365 dias. no entanto não conseguia deixar de fixar o seu olhar naquela mancha rosada, cuja intensidade da cor diminuía à medida que o seu tamanho aumentava. será que não era possível festejar um aniversário sem ter de questionar tudo, perguntava interiormente ewan. no fundo sabia que era só uma questão de tempo. tinha exactamente 3 horas 37 minutos e 15 segundos de luta p'la frente. era esse o tempo que tinha para voltar à sua vida habitual, onde a leitura atenta de todo o tipo de publicidade indesejada e inútil e o consumo de informação televisiva série B ocupavam grande parte do seu dia. (...) quando chegou o dia em que ficou sozinho? pior, quando chegou o dia em que ficou igual a todos os outros? isso sim, era o mais assustador. qual foi o exacto momento em que abdicou daquilo em que acreditava e passou a viver num mundo de regras, onde nenhuma fora imposta por ele. valeu a pena abdicar dos seus sonhos para viver os de outrém? agora ewan sabia que não fora loucura, não foram devaneios os pensamentos e os planos que fez. era a única coisa que o consolava naquela noite de dezembro. (...) ewan sabia que a solução para os velhos não passava por cursos de geriatria. alguém perguntava a opinião dos velhos? claro que não. era tão mais fácil não os ouvir. ewan tinha a solução perfeita. para os velhos, para as famílias, para os hospitais, para a segurança social. para todos... ou para tudo, e não necessariamente por esta ordem. a solução era perfeita. toda a gente sabia, apesar de ninguém o dizer. mas ewan não era um velho qualquer, os seus 83 anos davam-lhe direito a ser ouvido. abriu a janela da cozinha do seu quarto andar. a rua estava cheia. os jovens amontoavam-se pelos cantos como sem abrigo à espera da primeira e única refeição do dia. ewan pensou que tinha aqui uma óptima oportunidade de poder falar. "matem os velhos" entoava ewan repetidamente. matem os velhos e para não se ficarem a sentir mal escrevam um livro ou plantem uma árvore. a única coisa que perdem é não poder usar o argumento que vai tudo para a reforma dos velhos, aqueles cabrões que não se mexem para nada. fora isso está perfeito. (...)

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